Academia de Medicina
Apesar de ser químico, Pasteur foi admitido na Academia Médica de Paris em 25 de março de 1873, onde desde o início defendeu seus pontos de vista sobre os microrganismos e os fenômenos de putrefação que ocorriam no homem.
Assim, são poucos os que vêm Pasteur sentar-se na Academia de Medicina de bom grado, mas graças à sua reputação e conexões, o cientista torna-se membro. Sua eleição é disputada por um voto, o que novamente mostra quão grande é a desconfiança do químico.
Pasteur foi escolhido para ser ouvido como um especialista. Raros foram os que imaginaram Pasteur intervindo nos debates, ousando aconselhar e até a dar ordens sobre a arte de curar (Debré, 1995, p. 340).
Claude Bernard vê em Pasteur um aliado contra médicos que desprezam a fisiologia (Debré, 1995, p. 327). Eles sentam-se lado a lado e conversam familiarmente (Debré, 1995, p. 392). Bernard defende as experiências de Pasteur e reconhece sua originalidade, concedendo-o o prêmio de fisiologia experimental. Bernard é mais cientista do que médico, pois a seus olhos, o trabalho de laboratório é que fundamenta a medicina experimental e permite às antigas terapias se transformarem em ciências (Debré, 1995, p. 395).
Durante muito tempo o bisturi ficou separado do microscópio. Só as lições de Pasteur e de Claude Bernard, juntos, na Academia de Medicina conseguirão mudar essa mentalidade. Por chocar com os hábitos de uma casta médica, as contribuições conceituais da microbiologia levarão mais de ¼ de século para penetrar nos costumes e práticas médicas (Debré, 1995, p. 301). Bernard preparou o terreno e foi Pasteur quem redesenhou a paisagem médica onde evoluímos há 1 século (Debré, 1995, p. 550).
Bernard fala pouco, não sorri e raramente faz algum comentário. Faz inúmeras experiências com animais, relata as observações feitas e redige comunicações extensas para os padrões das Academias. Nunca faz propaganda de si mesmo e diferentemente de Pasteur, nunca quis sair falando de suas teorias e resultados. Apesar de ser reconhecido em toda a Europa como o primeiro fisiologista de sua época, Bernard só se sente à vontade em seu laboratório (Debré, 1995, p. 395).
Uma estima recíproca vai unir estes dois amigos, em laços verdadeiramente pessoais. Bernard, uns 10 anos mais velho, sempre apoiou Pasteur prontamente, sobretudo na época da eleição de Pasteur para a Academia de Ciências. Eles se encontravam regularmente e participaram juntos de um pequeno grupo de peritos encarregado por Napoleão III para fazer um relatório sobre a situação do ensino científico na França (Debré, 1995, p. 397).
Na ocasião do adoecimento por enterite de Bernard, Pasteur, para apoiar seu amigo em convalescença e em repouso afastado de Paris, publica o artigo “Claude Bernard, importância de seus trabalhos, seus ensinamentos e de seu método”. Para isso, releu todos os trabalhos do amigo fisiologista. Bernard fica emocionado e agradecido, e lhe escreve “a admiração que o senhor demonstra por mim é recíproca”.
Quando, por sua vez, Pasteur é atingido por um AVC, Bernard é um dos primeiros a comparecer à sua cabeceira para lhe trazer, afetuosamente, o seu apoio moral (Debré, 1995, p. 398).
Mais adiante, em 1878, Bernard fica gravemente doente. Acamado, é assistido pelo seu aluno Arsène d´Arsonval, a quem revela suas dúvidas sobre as teorias de Pasteur a respeito das fermentações. Ele acha que o fenômeno independe das leveduras, negando o papel da bactéria como organismo vivo, e diz ter anotações de resultados preliminares confirmando suas hipóteses. Neste mesmo ano, Bernard falece e seu aluno encontra seus papéis no quarto, e percebe que não são resultados, mas um esboço de trabalhos a realizar. D´Arsonoval e seus amigos optam pela publicação e enviam os papéis a Marcellin Berthelot, que não acredita no papel do ser vivo na fermentação, e publica as notas de Bernard em revista científica. A curiosidade é grande por esta publicação, pois Bernard não era amigo de Pasteur? (Debré, 1995, p. 399).
Pasteur inicialmente não sabe se deve reagir publicamente, pois sabia ser uma atitude inerente de Bernard a de questionar tudo, a fim de não deixar passar nenhum erro de raciocínio. Pasteur consulta então a opinião de colegas na Academia. Alguns aconselham a não se deixar incomodar pelo que seria uma volta ao passado; outros pensam que o respeito à memória de Bernard obriga a responder apenas com fatos, já que Bernard não está presente para sustentar uma discussão. O que mais choca a retidão de Pasteur é polemizar com um morto, no entanto, após ler os documentos por inteiro, decide se posicionar sugerindo que a publicação de Berthelot não é fiel ao pensamento de Bernard e anuncia que está começando uma nova série de experiências sobre fermentação, não para defender sua teoria, mas para dar continuidade aos trabalhos que Bernard não teve tempo de terminar. Naquele ano, as férias de Pasteur são consagradas a estas experiências e consegue resultados taxativos: a levedura é indispensável para a fermentação. Pasteur publica suas conclusões sob a forma de um exame crítico de um escrito póstumo de Claude Bernard sobre a fermentação, onde afirma no final que “a glória do nosso ilustre colega não foi diminuída” (Debré, 1995, p. 401).
Michel Peter afirma que um médico não precisa se sobrecarregar com os saberes de um químico, de um físico ou de um fisiologista. Dirigindo-se a Pasteur, fala a respeito da febre tifoide: “O que me importa o seu micróbio?”. Em resposta, Pasteur denuncia o que para ele é uma “blasfêmia médica” e insiste que o médico deve não só curar, mas prevenir a doença, e recomenda a profilaxia e a higiene (Debré, 1995, p. 301).
Peter é um dos mais influentes membros da Academia, e afirma que “as descobertas das bactérias são curiosidades da história moderna (...) quase sem nenhum proveito para a Medicina”. "Na Academia, Peter se arvora de promotor e transforma a assembleia em uma audiência de acusação: 'A desculpa do senhor Pasteur é a de ser um químico, que inspirado no desejo de ser útil, quis dar força à medicina, ciência que lhe é totalmente estranha" (Debré, 1995, p. 460).
Peter e Pasteur se desprezam, mas são parentes afastados do lado de suas esposas, por meio de um ancestral comum, Joseph Loir, que foi veterinário do exército do Egito. Ele havia se casado sob as ordens de Napoleão Bonaparte. Seu neto é Adrien Loir, sobrinho de Pasteur, que trabalha de manhã com Peter e de tarde com Pasteur. Deste modo, participa da briga dos dois “patrões” (Debré, 1995, p. 459).
Gabriel Constant Colin se revela um adversário da teoria de Pasteur. Este veterinário se apoia em 12 anos de trabalho com o carbúnculo para afirmar que Pasteur está errado em acreditar que o bacilo é o responsável pela doença. Colin também se recusa a admitir o fenômeno de incubação de certas doenças. Pasteur se esforça em vão em convencê-lo apesar das explicações. Colin conserva vários adeptos entre os médicos. Diante de vários debates contraditórios na Academia, Pasteur exclama aos jovens que assistem às sessões: “jovens, vocês que se sentam no alto destas arquibancadas provavelmente são a esperança do futuro médico do nosso país. Não venham aqui para procurar a excitação da polêmica; venham se instruir com os métodos” (Debré, 1995, p. 356-358).
Henri-Marie Bouley, veterinário, se declara impressionado com a interpretação de Colin e embora partidário de Pasteur, convida-o a examinar de perto as objeções que lhe são feitas, as quais Pasteur replica vigorosamente. Porém, cabe ressaltar que Bouley é um dos grandes apoios de Pasteur (Debré, 1995, p. 355, 448, 460, 495). Na Academia, cada vez que Bouley tenta louvar os méritos de Pasteur, Peter intervém e é aplaudido em nome da medicina tradicional (Debré, 1995, p. 460).
Alphonse Guérin cria o laboratório de anatomia e química patológica para observar os benefícios do uso dos curativos acolchoados. Ele associa o abcesso às febres infecciosas (Debré, 1995, p. 327). Pasteur constata que os curativos de Guérin, assim como os de Lister, são os verdadeiros responsáveis pelos sucessos cirúrgicos constatados, graças à filtragem dos germes por essa separação acolchoada e a consequente destruição destes pela solução anti-séptica (Debré, 1995, p. 328).
Quando Pasteur faz uma comunicação à Academia de Medicina dizendo que pretende produzir vacinas, mas ainda sem relatar o processo (que ainda iria dar início), os adversários de Pasteur, encabeçados por Jules Guérin o censuram por não comunicar os detalhes de sua técnica e conseguem que a Academia repreenda a conduta de Pasteur. Ele fica furioso e abatido, pois naquele mesmo período sua irmã Virginie acaba de falecer. Pasteur faz diversos rascunhos de uma carta de demissão da Academia, mas volta atrás. Mais adiante, Pasteur estará apto a revelar em detalhes o seu processo experimental de virulência atenuada (vacinação), que marcará o nascimento de uma nova disciplina, a imunologia (Debré, 1995, p. 427-428).
As discussões sobre a varíola e a vacina continuam na Academia, o que se torna cansativo para Pasteur. O conflito entre os dois se agrava e Pasteur o responde grosseiramente e recusando-se a responder a Jules Guérin, e acrescenta: “Doravante, seremos dois no combate e veremos qual de nós sairá ferido e machucado desta luta”. A sessão é suspensa por um grande tumulto. Guérin furioso se precipita sobre Pasteur e é impedido pelo barão Larrey, que se interpõe. Na época, Guérin tem quase 80 anos e Pasteur quase 60 anos. Depois de alguns dias, o conflito vai se extinguir e Pasteur aceita se desculpar, cujas palavras ficaram registradas na ata: “Se, no calor do debate, pronunciei alguma palavra ou julgamento que pudesse prejudicar o renome do senhor Jules Guérin, eu as retiro e declaro que nunca desejei ferir nosso sábio colega. Em nossas discussões, só tive uma preocupação, a de defender, energicamente, a exatidão dos meus trabalhos” (Debré, 1995, p. 441-442).
Gabriel Colin e Jules Guérin continuam a atacar Pasteur, mesmo após o sucesso do experimento em Poilly-le-Fort. Não raro, Pasteur deixa a sala, com raiva contra os que não compreendem o valor de suas experiências. Finalmente, resigna-se a não mais assistir às sessões da Academia. Sua ausência, no entanto, não impede as controvérsias sobre a teoria microbiana, a teoria do contágio e sobre as terapias propostas (Debré, 1995, p. 459).
Charles-Emmanuel Sédillot (não era membro da Academia) era um fervoroso partidário de Pasteur. Com 64 anos, foi um dos primeiros a aceitar e encorajar os trabalhos de Pasteur e suas aplicações cirúrgicas. Ele lê uma nota na Academia resumindo a evolução positiva do tratamento das lesões, com curas mais frequentes e redução de gangrenas e amputações. Se relatório termina com uma apologia à palavra micróbio (em vez de animálculo), dizendo: “a palavra micróbio tem a vantagem de ser mais curta e de possuir um significado mais geral e, tendo meu ilustre amigo Littré, o linguista mais competente da França, aprovado esse nome, nós o adotaremos” (Debré, 1995, p. 408).
Maximilien-Paul-Émile Littré era unanimemente respeitável, sendo descrito como uma das grandes mentes do século, e pela sagacidade de sua mente, Ernest Renan disse ser “uma das consciências mais completas do universo”. Foi autor do célebre Dictionnaire, e mesmo deixando de praticar a medicina, torna-se um erudito na área. Deste modo, torna-se a autoridade mais competente para batizar os pequenos organismos que Pasteur detectou em seu microscópio. Em resposta a Sédillot, afirma: “para designar os animálculos, eu daria preferência a ‘micróbio’; primeiro, porque, como você diz, é mais curto, depois porque ele destina ´microbia´, substantivo feminino, para a designação de estudo do micróbio” (Debré, 1995, p. 410).
Pasteur e Littré se respeitam, mas existem entre eles diferenças: Littré é republicano, franco-maçon e positivista. Para Pasteur, os positivistas não entenderam o sentido do método científico, e afirma “Para julgar o valor do positivismo, meu primeiro pensamento foi procurar nele a invenção. Não achei. Como não me oferece nenhuma ideia nova, o positivismo me deixa reservado e desconfiado” (Debré, 1995, p. 413).
As profundas razões que levam Pasteur a se opor à filosofia positivista são mais específicas, por exemplo, o positivismo rejeita o uso do microscópio, e separa a química da biologia, por exemplo. Entretanto, é a questão da existência de Deus, que Pasteur chama de infinito, que o afasta do positivismo. Pasteur diz: “aquele que proclama a existência do infinito reúne mais sobrenatural nessa afirmação do que o existente em todos os milagres de todas as religiões. (...) Vejo em toda a parte a inevitável expressão da noção do infinito no mundo. A ideia de Deus é uma forma da ideia do infinito” (Debré, 1995, p. 414).
"Nos bancos da antiga Casa de Caridade, Pasteur encontra cinco dos maiores positivistas: Claude Bernard, Émile Littré e, é claro, Marcelin Berthelot; também Paul Broca, o célebre neurologista a quem se deve a primeira descrição anatômica do cérebro e Charles Robin, colaborador de Littré, inventor das palavras "hemácias" e "leucócitos" para designar os glóbulos vermelhos e brancos do sangue. Como revelam as atas das sessões, depois da morte de Claude Bernard, esses cientistas deixam Pasteur lutar sozinho. Por ocasião da famosa comunicação de maio de 1880, quando Pasteur descreve o estafilococo do furúnculo como sendo também responsável pela osteomielite, nenhum deles toma a palavra para destacar a importância da descoberta" (Debré, 1995, p. 416).
Alfred Vulpian é um dos médicos mais respeitados de sua época. Se torna membro da Comissão Oficial da Raiva, criada pelo governo, a pedido de Pasteur, para controlar e avaliar as pesquisas em curso sobre a doença. Diante do exame do paciente Joseph Meister, diz a Pasteur que acha o caso sério o suficiente para que se justifique esta primeira tentativa de vacinação. Após o sucesso do tratamento e diante da Academia de Ciências, Vulpian pede a palavra dizendo que Pasteur trabalhou durante anos, com uma série de pesquisas feitas sem interrupção até criar um tratamento do qual não duvida do sucesso (Debré, 1995, p. 489, 494).
Após a descoberta da vacina da raiva, Jean-Martin Charcot aproveita para posicionar-se perante os inimigos de Pasteur na Academia de Medicina: “o inventor da vacina antirrábica hoje, com mais razão do que nunca, pode andar com a cabeça erguida e prosseguir o cumprimento de seu glorioso labor sem deixar-se desviar dele, no mínimo pelos clamores da contradição sistemática ou pelas insidiosas murmurações da difamação” (Viñas, 1991, p. 156).
Referências:
DEBRÉ, Patrice. Pasteur. São Paulo, SP: Scritta, 1995.
VIÑAS, David. Louis Pasteur. Barcelona, Espanha: Labor, 1991.
https://www.pourlascience.fr/sd/histoire-sciences/la-mort-par-les-microbes-3896.php
Fachada da Academia de Medicina. | Frente da Academia de Medicina. | Detalhe da inscrição da Academia de Medicina em Paris. |
---|---|---|
Biblioteca da Academia de Medicina. | Interior da Academia de Medicina. |